quarta-feira, junho 13, 2007

licença literária: Entre Tesouros e Delitos

"Introspectivo por natureza, dedicou parte significativa de seu tempo a observar os devaneios do mundo. Nunca se permitiu muito viver o frenesi da vida urbana, da qual admirava mesmo era a vista para o mar. Aprendeu logo a contemplar as coisas além do sabor: do bom café o aroma, da combinação de temperos o caleidoscópio de cores, da intrincada frase ornamentada ao piano a dramaticidade latente das sonatas de Mozart.

Na repartição, era tido em alta conta por quase todos. Homem de poucas embora gentis palavras fez-se notável por sua conduta ética impecável e assertividade na condução de suas atribuições. Desde os primórdios de sua carreira – iniciada naquele mesmo modesto escritório da Procuradoria Pública – muitas coisas haviam mudado na agitada capital da República. Mas ele nunca abriu mão de sentar-se no corredor, de frente para a pequena janela de cujas frestas, ao longe, seus olhos por vezes repousavam sobre o contorno longilíneo do mar.

Nos últimos tempos, dividia seus dias entre o registro de memórias de casos passados e longas conversas despretensiosas com os recém-chegados, para quem ele representava um ícone de famosas atuações. Havia passado seus anos tratando de alguns tipos específicos de casos. Ele implicava com leiloeiros; apreciava mais os falsários. Sobre os leiloeiros dizia não confiar em pessoas cuja idoneidade presumida se fazia avalizar por evidências documentais apenas. “Excesso de senso de oportunidade faz mal à saúde moral”, advertia.

Já sobre os falsários, na cumplicidade de seu íntimo apenas, lançava mão de seu gosto particular pela contemplação. Embora implacável cumpridor de suas obrigações profissionais, se permitia o prazer de admirar a obra de arte, que é o produto de uma falsificação bem feita. A concentração que suporta o treino meticuloso, o capricho no traço, a discrição embutida no espírito de não chamar atenção desnecessariamente – atributos de inegável refinamento estético. Elementos que, para ele, faziam dos falsários experientes seres incomparáveis aos leiloeiros negociadores, meramente movidos pelos dígitos de suas comissões de vendas. “Verdadeiros talentos da arte da imitação... mal intencionados, é fato; mas ainda assim, artistas!”, dizia a si próprio, durante aqueles segundos de luta interna entre sentimentos conflitantes, do apreciador-procurador.

Aterrissado de volta ao caos urbano da República, o ruído seco do carimbo oficial na folha de rosto da petição uma vez mais oferecia denúncia formal a um falsário. Irremediavelmente comprometida estaria a criação de outras obras de comparável pretensa autenticidade pelas mãos daquele cidadão. Sentimento de missão cumprida. Mas com o olhar perdido por entre as frestas da janela, fantasiava que elas, as obras, se salvariam rumando para o orfanato dos tesouros ilegítimos. E se deixava escoltá-las mar adentro por entre as ondas inebriadas, misturadas às linhas de fumaça subindo pelas bordas de sua xícara de café. Mais um dia de trabalho."

[texto de autoria de Sheila Maceira, originalmente submetido para o concurso literário da revista piauí, edição de junho de 2007, com o título Entre Tesouros e Delitos; frase desafio para encaixe: Ele implicava com leiloeiros; apreciava mais os falsários]

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