segunda-feira, novembro 15, 2010

experimentos da sétima arte: a invenção órfica de cocteau

Muita coisa mudou aqui na sede do LesAmis com o celebrado entendimento entre a central de mídia e a telona. Cinéfila por natureza, as possibilidades de exploração das pérolas da sétima arte se ampliaram alavancadas pela conveniência do streaming via internet: salve a tecnologia digital! :)
E para inaugurar  o milagre da acessibilidade, um clássico desde há muito aguardando na lista de desejos: Orphée, de Jean Cocteau, em sua versão original de 1950.
Muitos artigos de qualidade já foram escritos sobre este filme (incluindo este publicado pelo Cifefil - Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos), então vou me ater aqui a compartilhar um pouco do que nele me encanta especialmente.
Em primeiro lugar, a coesão do roteiro, que resolve de forma brilhante a junção de duas diferentes explicações do mito: o Orfeu como visto pela religião oficial grega - portanto, filho de Apolo e Clio - e o Orfeu da genealogia popular - neste caso filho de um nobre (o rei Eagro) com uma musa (Calíope).
É pela lente popular que o mito atravessa os tempos e chega com força estrondoza até nossos dias: o Orfeu composto da mistura entre o olhar do estrangeiro (refletido particularmente na música e poesia, do pai) com o apetite nato pelos mistérios, da mãe, dando origem ao herói situado entre vida e morte, real e sonho, matéria e espírito, sons e silêncio.
Em segundo lugar, a brilhante modernização do mito, sem nunca colocar em risco a contaminação pela visão romântica tardia: no cinema de poesia de Cocteau, a paixão obssessiva de Orfeu tem como alvo a princesa da Morte, e não sua esposa Eurídice. Na versão de Cocteau, Orfeu desce não apenas uma, mas duas vezes ao inferno. Nesta leitura, a princesa da Morte é quem determina o desfecho final, fazendo Orfeu retornar à vida, para sua Eurídice, mas ainda imperfeito, como o homem que nunca deixara de ser - e além disso, proibido de olhar para trás, para sua Eurídice. Ao fazê-lo, conforme crenças da antiguidade, Orfeu simboliza a busca do homem por compreender suas origens, seus porquês. E permanecer preso à sua solidão, à sua "orfandade".
Uma releitura digna de nota, em alguns aspectos divergentes da versão mais amplamente aceita do mito, mas que em nada o corrompe. Muito pelo contrário, em minha modesta opinião: divergências que em muito enriquecem e humanizam o mito. E que ao lado das soluções técnicas adotadas pelo cinema dos anos 50 para representar o caminho pelas trevas na descida ao Inferno, em nada ficam a dever para a tecnologia de nosso tempo. Recomendado!

Nota: Como era de se esperar, como cidadã do século XXI, senti falta de uma trilha sonora mais presente, reforçando o poder dramático do mito. Nenhuma crítica séria, talvez antes uma limitação ou mesmo resistência a deixar de lado os valores estéticos de nosso tempo... :)

Um comentário:

FanaticoUm disse...

Obrigado por este interessante texto!